terça-feira, novembro 06, 2018

ser filha

o tempo foi passando e chegaram os 10 anos em que o meu pai morreu.
ele foi, nós ficamos.
uns melhor,outros assim a assim,outros sei lá como.
eu? sei lá como fiquei. fui ao fundo,fiquei por lá muito tempo e vim à tona várias vezes.
os ciclos de vida e da vida assim me fizeram.mergulhar,respirar,mergulhar e planar tipo boiar.
de todos nós, ela foi a que não ficou nada.
ou ficou tudo.
ficou abandonada,sózinha,sem emoção,sem nada.
o nada com tudo,o nada com todos,o nada que existia.
10 anos sem nada.tudo muito pela rama,tudo muito sem sabor,tudo sem vontade.
e se nada existia,o pouco que ainda podia ser a bóia para sobreviver foi-se indo até quase desaparecer.
é da idade.é assim que começa.é assim que vai acontecer.
ela deixou de estar atenta,deixou de nos ouvir,deixou de nos ver,porque assim procurou para ter o nada.
já nada interessa e nós,que orfãos há 10 anos,não importamos.
olho-a e enraiveço-me por mim e por ela.por ter desistido de lutar e sempre me arrastar nesta derrota.
olho-a e sofro de tristeza,pela tristeza infinita nos olhos azuis,pelo desencanto de 10 anos.
vejo-a perder-se de mãos livres sem olhar a nada.
mas somos nós,os orfãos que a perdemos.
o tempo está a passar e a dor da perda de há 10 anos, que não passa,vem juntar-se à dor da perda da mãe que sempre achamos que não se ia perder.

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