quarta-feira, janeiro 31, 2018

maternidade

nunca brinquei com bonecas.
nem me lembro de as ter, apesar de me dizerem que as tive.
lembro-me dos carros que o meu pai me trazia,de correr e saltar, de andar pelos muros.
depois vieram os livros.mas não gostava de histórias de fadas e muito menos de bonecas.
os nenucos,quase que pequenos monstros ainda apareceram mas nunca lhes liguei.
gostava das barriguitas pretas.só das pretas porque não eram parecidas com os meninos e meninas que conhecia.
e sem bonecas,cresci até eu própria ser a boneca do bolo.
a boneca de branco,cor de pele que eu nem gostava e a pele até podia ter sido outra.
casei.e logo vieram as perguntas,os comentários:e filhos,tudo se cria,é uma benção,é para isso que se cresce.
ok.
quando o meu filho nasceu foi um carrocel descontrolado de tudo.não queria estar grávida, e ele nasceu tão depressa que nem deu tempo de preparar tudo como as perguntas e os comentários diziam.
e de repente estava ele ali,ao meu lado e eu sem perceber como era .como vestir,como pegar,como olhar.
desconfiada olhei para o meu braço que o amparava e ele ali estava:minúsculo,magrito,sem sobrancelhas, quase sem cabelo e de olhos fechados.
mas foi o nariz,o nariz que me fez apaixonar e ser mãe naquele momento de solidão que tivemos.
sózinhos ainda estávamos ligados, e ele empinou o nariz para me dizer:gostas de bonecas?não,mas agora eu estou aqui e tens de brincar comigo.
brincar foi o viver todos aqueles momentos que posso esquecer em palavras e em imagens,mas que sinto embrulhados em mim
foi a maternidade.foi aquilo que nunca mais me deixou ser só eu,e passou a ser nós.
quando a leonor, a filha ansiada por mim,mais do que a mim própria surgiu, a maternidade já cá andava,mas foi a magia que me encantou:era eu em sonhos que ali estava,era a boneca que eu nunca tinha tido,nem gostado,era a barriguita rosada.
se tivesse falado,sei o que me teria dito,gosto de ti, mãe.gosto de ti e quero abraçar-te.
depois cantaria para mim,para me embalar a dor física que esqueci na paixão que ali nasceu.
foi a maternidade.foi aquilo que nunca mais me deixou ser só eu,e passou a ser nós.
duas vezes instalada em mim,duas vezes é para sempre,para a vida.
o tempo passou, as noites nunca mais foram iguais,ainda hoje,passados 21 anos de um, 17 de outro,nunca mais foram de sono leve de ouvir a respiração, as voltas na cama,as vozes que sempre falaram no sussurro das noites.
nunca mais foram.assim como os dias.prendem-me sempre, por momentos,por eternos momentos,por silêncios,por sonoridades,prendem-me porque a maternidade está ali.
não se explica,não se pinta,não se canta,não se escreve.está ali.
mas o tempo continua num tic tac obsoleto descritivo e ora corre ora caminha devagar e de repente dou por mim a perder a maternidade.
fiquei incrédula comigo.eu?maternidade a perder-se?não quero,não pode ser.
sim.
percebo que outra coisa,outro sentimento,outro quê,outro olhar,outro pensar vai aparecendo e percebo que me divorcio dos meus nós,dos meus eu e ele,dos meus eu e ela.
a alegria da maternidade está a entristecer-me.parece nua e transparente porque não tem cor.
talvez seja assim.talvez agora tenha de parar a maternidade de nós, esperando pela maternidade deles.
de repente pareceu-me isso:por entre sonhos da minha maternidade,vi-me a sentir outras maternidades que serão minhas,mas o nós será deles.
 ...não está a ser fácil...

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